Porque
passaram 37 anos, a História os julgará.
Com
a devida vénia transcrevo a carta do Bispo de Díli à viúva do Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia,
publicada por Broca.
Carta do
Bispo de Díli à viúva do Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia
Há muito que me pesam no coração a
dolorosa ansiedade e a cruel angústia de V.Exª. e de todos quantos têm, em
Timor, os seus entes queridos e têm estado sem notícias deles. Por S. Exª.
Revª. o Pró-Núncio Apostólico em Jacarta, sei, agora, que V. Exª. vive
mergulhada em grande aflição e tristeza por absoluta falta de notícias e que
pediu à Santa Sé informações sobre a situação do seu extremoso marido. É mais
uma falta da minha parte. Mas, como compreenderá, nem sempre é possível
escrever em pleno fragor da guerra. A vida começa, agora, tanto quanto é
possível, a normalizar-se na cidade de Díli e nalgumas vilas da Província e,
por isso, apresso-me a escrever-lhe esta carta, através da mesma Nunciatura em
Jacarta que, espero, a fará chegar à mãos de V. Exª.
Durante o período da guerra, como V. Exª sabe, tenho
acompanhado, mais ou menos de perto, directa ou indirectamente, a sorte dos
nossos queridos prisioneiros e, por isso, a do seu Exmº Marido e meu caríssimo
amigo Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia. Particularmente assisti-lhe com
assiduidade, quando ele baixou ao hospital sem gravidade, mas onde se manteve
até ao dia 7 de Dezembro de 1975. Nesta data, a FRETILIN levou,
para Aileu, todos os doentes presos, como aliás todos os seus prisioneiros,
detidos em Díli, que andariam à volta de uns 800. (1)
Foi, então, que perdemos o contacto com os presos. Todos
nós sentíamos a sensação de nos encontrarmos num túnel de curva fechada e
vivíamos horas cheias de angústia, situações de terror e como de contínuo
suspensos sobre o abismo da morte. Deus e só Deus, era a nossa esperança: ao
coração d’Ele fazíamos e continuamos a fazer insistente violência.
Preso e morto pelos comunistas da FRETILIN
Só agora, - e já vão sete meses de guerra – começa a
raiar esquivamente a aurora de possíveis dias de paz: começa a haver
tranquilidade e confiança e a vida está a voltar à normalidade. E, também, só
agora, estão chegando daqui e dali, do interior da Província, notícias do que
por lá se passou. Estão aparecendo alguns prisioneiros levados pela FRETILIN,
mas são muito poucos, os suficientes, porém, para por eles se saber os que não
mais voltarão, porque foram mortos pelas forças comunistas. E entre estes que
não mais voltarão, porque seguiram rumo à Casa do Pai do Céu, está o nosso
querido Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia: fez parte de mais de mil prisioneiros
executados pela FRETILIN, no altar do ódio a Deus, à Família e à Pátria.
É
deveras dolorosa esta minha missão de lhe anunciar que Seu extremoso marido não
pertence já ao número dos vivos “neste vale de lágrimas”, deu a sua vida
pela fé e pela Pátria, morreu como um autêntico cristão, como um homem
inteiriço, como um militar da têmpera desses militares de antanho, que são o
orgulho e exemplo da nossa gloriosa História. É natural, minha Senhora, que o
seu coração de esposa sangre de dor e que a Sua alma mergulhe na tristeza mais
atroz; mas quando um homem morre como o seu marido morreu, herói da fé e da
Pátria, é mais motivo para dar graças a Deus e honrar-se em tal morte do que
para lamentações e lutos (...)
Rezar com os companheiros antes do fuzilamento
A execução devia ter sido entre 9 e 15 de Dezembro de 75. Neste
momento, ainda não me é possível averiguar a data exacta. (1). Sei
apenas, como atrás disse, que todos os presos tinham sido levados de Díli para
Aileu, em condições das mais desumanas. (2) Em dia que não consegui
ainda precisar, mandaram reunir todos os presos, como era rotina, e foi feita a
chamada de cerca de 50 a 60 homens, incluindo o nome de Maggiolo Gouveia, que
sucessivamente iam alinhando no terraço. A este grupo, escoltado pela milícia
armada, como era hábito, foi dada ordem de marcha em relação à estrada
Aileu-Maubisse. Chegados aqui, e percorridos uns metros de estrada, soou a voz
de “alto” e o grupo parou e viu-se próximo de uma grande vala, previamente
aberta ao lado da estrada. É-lhes, então, dito que todos vão, ali, ser
fuzilados. Há um momento de consternação e estremecimento colectivos. As
milícias põem a arma à cara: e é então que o Tenente-Coronel Maggiolo Gouveia
levanta a voz e diz: “Senhores, deixem-nos rezar.” E todo o grupo, de
joelhos em terra, reza o terço a Nossa Senhora, dirigido pelo Tenente-Coronel
Maggiolo Gouveia. Terminado este e estando todos ainda de joelhos, encoraja e
anima os seus companheiros “condenados à morte” e termina dizendo: “Irmãos,
breve vamos comparecer na presença de Deus e Pai; façamos o nosso acto de
contrição, o nosso acto de amor”. E, em silêncio, entrecortado de lágrimas,
os corações daqueles homens sobem a Deus para pedir... para lembrar..., e
dizer... aquilo de que, naquela hora verdadeira, Deus é o único testemunho.
Depois, o Tenente-Coronel põe-se de pé, sendo seguido neste gesto pelos seus
companheiros, e dirige-se aos soldados-algozes nestes termos: “Irmãos, nós
estamos já preparados para comparecer no Tribunal de Deus, lá vos esperamos
também a vós. O meu único crime foi o de não renegar a minha fé e o de amar
Timor. Morro por Timor. Morro pela minha Pátria e pela minha fé católica.
Podeis disparar”. Evidentemente, os soldados timorenses ficam como que
petrificados. Não se movem, nem se atrevem a pôr arma à cara. É um estrangeiro
que rompe o silêncio nestes primeiros instantes e quebra a indecisão daqueles
soldados nativos: põe ele a arma à cara e dispara contra o Tenente-Coronel
Maggiolo. E, logo a seguir, todos os outros soldados fazem o mesmo, abatendo,
com rajadas sucessivas, todos os presos. (Esta narrativa – quero que o saiba, minha
Senhora – ouvi-a da boca de um dos presos de Aileu, o Administrador de Concelho
de Maubisse, Lúcio da Encarnação, que a ouviu, por sua vez, dos próprios
soldados algozes e que, ao fim, foi salvo pelas milícias de Ainaro).
Assim morrem os heróis
Assim morrem os heróis. Assim morreu o Tenente-Coronel Alberto
Maggiolo Gouveia. E quem assim morre, é orgulho para os pais, para a esposa,
para os filhos e para a Pátria; e desta forma, não é a morte que coroa a vida,
é a glória eterna em Deus, que sublima a morte. E mais vale morrer com glória
do que viver com desonra – eram desta têmpera os portugueses de antanho. – Foi
a ideia-força na vida deste Homem, deste Cristão e deste Oficial do Exército
Português, de Maggiolo Gouveia. Se, como piedosamente cremos, ele continua a
viver no Céu, junto de Deus, também viverá no coração dos timorenses, enquanto
a memória dos homens não se desvanecer.
Desculpe, minha Senhora, fui muito extenso e não disse tudo, mas
penso que seria esta a melhor forma de mitigar a sua grande dor, de pedir-lhe
que tenha coragem na vida para vencer até ao fim, onde o encontrará, e de
exortá-la à confiança em Deus, que é o melhor dos pais e que, assim, a começa a
preparar para “esse encontro” na meta final da vida.
Aqui vão, Senhora D. Maria Natália, para V. Exª., para os seus
filhos e para a demais família, as minhas profundas condolências e a expressão
da minha comunhão de orações de sufrágio, com os meus sentimentos de religiosa
estima e muita consideração.
De Vossa Excelência, servo
inútil em Cristo
Em 10 de Março de 1976
José Joaquim Ribeiro, Bispo de Díli
Notas:
(1) No aspecto legal, o Tribunal
Judicial de Abrantes considerou a sua morte presumida em 8-12-75, sendo esta
data publicada na Ordem do Exército.
Entretanto, através de fontes ligados a D.
Ximenes Belo e à Igreja Católica, veio a confirmar-se o fuzilamento de Maggiolo
Gouveia e dos seus companheiros na antevéspera do Natal de 1975, e tal como referi anteriormente, ordenado pelo
comité central da FRETILIN, ao qual pertencia Xanana Gusmão (*)
(2) Recortada a notícia de Maggiolo
Gouveia ter feito o percurso a pé, carregando um cunhete de munições.”
(*) Nota do titular do blogue: tanto quanto me
é dado saber, também faziam parte do Comité Central da Fretilin: Ramos Horta
(actual Presidente da República) e Mari Alkatiri (ex-Primeiro-Ministro e líder
actual da Fretilin)
Publicação: sexta-feira, 7 de Março
de 2008 22:48 por Broca