Disse
e escrevi várias vezes - e porque o disse e escrevi de forma vigorosa tive de
visitar, com regularidade, o tribunal do Funchal - que no dia em que fechassem
a torneira a Alberto João Jardim o seu domínio sobre a Madeira chegaria ao fim.
Não porque o Estado central deva usar o controlo dos recursos públicos para
premiar ou punir políticos de que não gosta. Mas porque o governo Regional da
Madeira usa esse dinheiro, muito para lá daquilo a que, numa divisão equitativa
dos recursos nacionais, lhe caberia por direito, para manter uma teia de
interesses, cumplicidades e dependências. Porque, numa região onde nem sequer
há, como no continente, uma lei de incompatibilidades para os deputados, o
despudor na promiscuidade entre interesses políticos e económicos atinge níveis
que até num país como Portugal são difíceis de tolerar. Porque, só para pegar
num entre muitos exemplos, o dinheiro dos contribuintes serve para distribuir
um jornal gratuitamente, tentando assim sufocar o pluralismo informativo.
A
Madeira foi, nestes últimos 39 anos, um feudo de violação sistemática das
regras democráticas, de atropelo à legalidade constitucional, de ataque às
liberdades cívicas e de achincalhamento da ética republicana. Nada que o todo
nacional não conheça por experiência própria, mas que ali atinge níveis
insuportáveis. Alberto João Jardim tinha dinheiro para manter os eleitores
satisfeitos, os aliados fiéis e os opositores divididos. Para comprar
empresários e a poderosa Igreja Católica local. Foi com esse dinheiro, que
fazia falta a outras regiões do país, mas que por razões que desconheço nunca
lhe foi negado, que Jardim construiu as fundações do seu poder clientelar e
arbitrário. E o caciquismo permitiu-lhe isolar a oposição, a que, com o poder
económico e político todo dependente de Jardim, apenas os mais corajosos ou com
fortuna própria se podiam dar ao luxo de pertencer.
Se a
democracia portuguesa está doente (disso falarei noutro texto), a da Madeira
está, há décadas, em estado de coma. Na realidade, a democracia plena não
chegou a criar raízes na ilha. Até que, como sempre disse que teria de
acontecer, a torneira se fechou. Não por decisão de algum governante mais
escrupuloso, mas pela profunda crise nacional. A quase vitória interna de
Miguel Albuquerque (anterior presidente da Câmara Municipal do Funchal)
explica-se por isso mesmo. Num PSD/Madeira construído na base da traficância de
cargos e negócios, a escassez deixou cada vez mais militantes fora do banquete.
Que, ressentidos, procuraram novo senhor. Também se explicam assim os
desentendimentos entre Jardim e o seu mais rasteiro colaborador, Jaime Ramos.
E, por fim, é a crise que explica a brutal derrota eleitoral que o PSD teve, no
domingo, na Madeira. Nunca foram os dislates e disparates de Jardim que lhe
renderam votos. Disso os madeirenses riam-se. Era a bebedeira de despesa útil e
inútil, legítima e de legalidade duvidosa, que, ao contrário do que muitos
gostam de dizer, não tinha qualquer paralelo com o que se fazia no resto do
País. Era uma lógica de apoio social que, em vez de combater a pobreza e a
exclusão, limitava-se a criar laços de dependência política. Uma cultura que
fez escola em vários partidos de oposição. Em que parte do País os deputados
distribuem comida aos eleitores com o dinheiro das subvenções do Estado e acham
que isso é politicamente aceitável?
Também
sempre disse que a Câmara Municipal do Funchal era o calcanhar de Aquiles de
Jardim. Não era impossível a oposição conquistá-la e, a partir dela, romper a
teia jardinista. Não esperava que no dia em que isso acontecesse o PSD perdesse
mais seis autarquias (em onze). Sem estas sete câmaras municipais o poder de
Jardim, que sufocava financeiramente cada autarquia que lhe saísse das mãos,
torna-se impossível de exercer. Sem dinheiro, sem grande parte do poder local,
com o partido rachado a meio e com todos os ratos a abandonar o barco, Alberto
João está politicamente morto. Não tem os instrumentos - o dinheiro e as
fidelidades que ele compra, o medo e os silêncios que ele garante - para se
manter no poder. A sua promessa de purga interna é apenas um daqueles momentos
patéticos que a paranóia de todos os pequenos déspotas sempre nos reserva no
momento de caírem da cadeira do poder.
A
coligação que juntou o PS, o Bloco de Esquerda, o PND, o PTP e o PAN (os
últimos três são, na realidade, partidos regionais que adoptaram siglas de
partidos nacionais já existentes) conseguiu um feito. Em que o PCP/Madeira
deveria ter participado, não ficando de fora da festa regional e da festa que o
partido teve no continente. Ou esta coligação aproveita o momento para
construir uma alternativa credível para a região ou a fera ferida terá tempo
para se recompor. E poderá nascer, dentro do PSD, um novo jardinismo sem Jardim.
Mas a tarefa mais difícil vem depois: reverter quatro décadas de uma cultura
clientelar que minou a democracia na Madeira. Se a pedagogia da democracia
exigente é, como se viu em Oeiras (sobre isso escreverei amanhã), uma tarefa
fundamental mas difícil em todo o país, na Madeira ela implica um trabalho
hercúleo.
: http://expresso.sapo.pt/madeira-nao-ha-dinheiro-nao-ha-palhacos=f833238#ixzz2gTbjyCgBDaniel Oliveira
Jornal Expresso
Terça feira, 1 de outubro de 2013
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