Cabe aos pais ou encarregados de educação
decidir o que é melhor para os seus filhos e educandos. Cabe à comunidade,
através do Estado, defender o superior interesse da criança. Os pais decidem
como educam os seus filhos mas os seus filhos não são propriedade sua, com a
qual podem fazer tudo o que entendam. Onde está a fronteira em que o Estado
deve intervir é sempre uma questão muito complicada. Outra coisa é quando as
escolhas que um pai faz não afetam apenas o seu filho, mas os filhos dos outros
e, com eles, toda a comunidade. Aí, o Estado tem mesmo obrigação de intervir.
Com cuidado, mas seguindo a máxima de que a liberdade de cada um acaba onde
começa a dos restantes.
É exatamente esta a questão que se põe com
uma moda que faz furor por toda a Europa e EUA e que só agora começa a chegar a
Portugal: a de não vacinar os filhos. Incluindo nesta opção as vacinas
gratuitas do Plano Nacional de Vacinação. Sendo que muitos dos que fazem esta
opção a fazem por convicções políticas ou filosóficas. A moda corresponde a uma
certa tendência das sociedades que atingiram um razoável grau de conforto e
segurança para ignorarem riscos que lhes parecem pertencer ao passado. É ver o
estudo "O Valor das Vacinas e da Vacinação" , divulgado há
um ano, que revelava que um quinto dos portugueses desvalorizava a vacinação,
por considerar que combatem "doenças que já estão a desaparecer" (11%
destes acreditam que as vacinas têm mais riscos do que vantagens).
Enquanto, por esse mundo miserável milhões
de humanos lutam desesperadamente por não morrer de doenças banais, muitos
europeus e norte-americanos surfam numa onda "New Age", feita
de mitos e de teorias pseudocientíficas, onde a convicção vale o mesmo que a
ciência. Mas não vale. E foi graças à ciência e à generalização das vacinas que
ganhámos esta sensação de segurança que, curiosamente, tem ajudado a crescer o
estranho movimento anti-vacinas. Na realidade, este movimento não é exclusivo
ocidental. Em 2003, no norte da Nigéria, uns imãs mais radicais decidiram que a
vacina contra a pólio fazia parte duma conspiração norte-americana para
espalhar a SIDA e esterilizar as mulheres islâmicas. A vacina foi proibida e um
surto de poliomielite espalhou-se pela Nigéria e países vizinhos.
Dirão que se tratam de fanáticos
ignorantes, sempre prontos a embarcar em teorias da conspiração. Na realidade,
as teorias não são assim tão diferentes das que se espalham pela Europa. A mais
comum é a que garante que há uma relação direta entre a vacina tríplice e o
autismo. A acusação, que nasce de um estudo de 1998, do cirurgião Andrew
Wakefield, foi várias vezes desacreditada por estudos científicos sérios , tendo até sido
considerado uma fraude . Mas se a ciência não convence os imãs da Nigéria
também não tem grande efeito nestes movimentos, que explicam todas as provas
irrefutáveis contra esta teoria com uma enorme conspiração que junta
cientistas, médicos e autoridades públicas de saúde. Muitas destas pessoas até
são movidas pela justa e compreensível desconfiança em relação à indústria
farmacêutica. Mas confundem, com consequências bem perigosas, causas políticas
com teorias científicas. Em sentido inverso, estes movimentos assemelham-se aos
negacionistas das alterações climáticas. A ideologia determina a ciência para
negar a realidade.
Seja como for, o alarmismo de Wakefield e
o ativismo destes movimentos deixou sequelas. Levou a que, por exemplo, muitos
britânicos decidissem não vacinar os seus filhos. Resultado? O Reino Unido
assistiu a um grande surto de sarampo, entre 2008 e 2009. Nos EUA, onde
várias estrelas mediáticas dão a cara pela causa da ignorância, um em cada dez pais adia a vacinação dos filhos ou pura e simplesmente
recusa-se a vaciná-los . Em Espanha, só se tinham registado
dois casos de sarampo, em 2004. Em 2010 já eram 1300. Por todo o mundo
rico, doenças que estavam erradicadas nas últimas décadas começaram
subitamente a regressar e a matar. A moda está a atingir tais proporções
que o Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças lançou um alerta,
em 2011 .
É discutível se um pai pode decidir não
dar ao seu filho os instrumentos fundamentais para defender a sua saúde. O que
não é discutível é se ele pode tirar aos nossos filhos e a nós próprios esses
instrumentos. E é disso que se trata. As
vacinas são uma proteção coletiva, não individual. Elas garantem uma
imunidade de grupo (ou "efeito de rebanho"). Quanto mais pessoas não
forem vacinadas, maiores riscos de contração da doença existirão para todos,
mesmo para aqueles que são vacinados. Se uma parte substancial da população
deixar de se vacinar é toda a comunidade que perde a sua atual imunidade.
Quando um pai decide que o seu filho não se vacina está a abrir uma brecha e
pôr-nos a todos em perigo.
Por causa deste risco cada vez mais
real, o Tribunal Constitucional da Croácia confirmou, esta semana, a
obrigatoriedade legal de vacinas contra nove doenças infecto-contagiosas
. Compreende-se. Desde que, em 1999, a vacinação passou a ser universal neste
País, a difteria, a tosse convulsa e o sarampo desapareceram, a tuberculose
diminuiu em 93%, o tétano em 97% e a hepatite B em 65%. Há coisas que não se
querem perder.
Continuo a achar que quando
retiramos a cada cidadão o direito de fazer o que entende com o seu corpo
estamos a mexer no que de mais sagrado há na sua liberdade. Mesmo sendo o corpo
dos filhos, tenho muita dificuldade em defender uma vacinação compulsiva. Mas
acredito que há passos que podem ser dados. Deixar de exigir apenas o boletim
de vacinas na escola pública e passar a condicionar a matrícula à vacinação
definida como prioritária. Ou, tendo em conta que o ensino obrigatório não pode
ser limitado, fazer depender outros benefícios públicos à existência desta
vacinação. Não tenho uma solução clara. Sei que todos temos o direito a viver à
parte da sociedade e das suas regras. Mas também sei que se as nossas
convicções põem em perigo todos os outros, é legítimo que a comunidade,
respeitando os direitos humanos, tente reduzir o risco que representamos.
Sobre as mirabolantes teorias em torno das
vacinas, recomendo o livro de divulgação científica "Pipocas com
Telemóvel e outras histórias de falsa ciência", de Carlos Fiolhais e
David Marçal, onde se desconstroem, de forma acessível para todos, vários mitos
pseudocientíficos
Daniel Oliveira
8:00 Quinta feira, 3 de abril de 2014
Ler mais: http://expresso.sapo.pt/nao-vacinar-os-filhos-uma-moda-que-poe-todos-em-perigo=f863708#ixzz2xpKYYff6
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